Em um mundo onde o capital circula com velocidade impensável, impulsionado pela globalização neoliberal, as cidades deixaram de ser apenas territórios de convivência humana. Tornaram-se arenas de disputa por poder, território e direitos. O sonho de justiça urbana, que ganhou força com as utopias socialistas no século XX, parece ter sido atropelado por políticas de ajuste fiscal, privatizações e financeirização da vida urbana. Mas a pergunta persiste: ainda é possível construir cidades justas no século XXI?
Globalização e a ruína urbana
Com a deslocalização produtiva e a busca por vantagens comparativas, o capital internacional impôs uma lógica de abandono a muitas cidades periféricas. No Brasil, esse movimento foi agravado por décadas de ausência do Estado no planejamento urbano e por um modelo de crescimento excludente. O resultado é a explosão de favelas, a precarização do trabalho e o colapso da infraestrutura pública.
David Harvey (2003) nomeia esse processo de “acumulação por despossessão”, no qual as formas tradicionais de expropriação — como a privatização de serviços essenciais, a mercantilização da terra e o desmonte do bem-estar social — são reatualizadas para servir à lógica do lucro. A cidade, nesse modelo, não é neutra. Ela é moldada para excluir.
A lógica da exclusão e a cidade-espetáculo
As cidades latino-americanas, herdeiras de um urbanismo colonial, enfrentam contradições profundas: crescimento informal, clientelismo, leis que valem apenas para alguns e uma elite que segue controlando o território urbano por meio da especulação imobiliária. No lugar da função social da terra, prevalece a lógica da “cidade-corporação” — onde o espetáculo, o turismo e os megaeventos ditam as prioridades dos investimentos.
A cidade passa a ser vitrine de consumo e não espaço de cidadania. O transporte público se degrada, a moradia se torna inacessível, a saúde e a educação são privatizadas ou subfinanciadas. Enquanto isso, bairros populares são empurrados para encostas, áreas de risco e periferias desassistidas.
A falência do mercado como provedor universal
O discurso neoliberal defende que o mercado pode suprir todas as necessidades. Mas os dados mostram o contrário. O déficit habitacional no Brasil ultrapassa 6 milhões de moradias. As áreas com maior infraestrutura urbana acumulam imóveis e terrenos vazios, enquanto milhões vivem sem saneamento básico. A cidade injusta é produto de uma urbanização sem justiça distributiva.
Os serviços públicos, quando regidos por lógicas mercadológicas, falham em atender quem mais precisa. Moradia, saúde, educação, transporte e saneamento não podem ser vistos como mercadorias. Eles são direitos. E o Estado tem o dever constitucional de garanti-los.
Avanços e retrocessos na luta por cidades justas
Apesar do cenário adverso, o Brasil registrou importantes avanços nas últimas décadas. O Estatuto da Cidade (2001) consagrou a função social da propriedade e abriu espaço para o planejamento participativo. O Ministério das Cidades (2003), criado durante o governo Lula, ampliou investimentos em habitação e saneamento, além de incorporar movimentos sociais à formulação de políticas públicas.
Essas conquistas foram fruto de mobilização popular e pressão institucional. Movimentos como o MTST e o MST ajudaram a transformar o “direito à cidade” em um conceito político e jurídico reconhecido. Ainda que limitadas, essas vitórias mostram que é possível reverter lógicas de exclusão.
O desafio das heranças coloniais e neoliberais
Contudo, as limitações são muitas. A herança patrimonialista das elites brasileiras, marcada pelo clientelismo, pela privatização da esfera pública e pela associação entre poder político e poder econômico, mina os avanços legais. O cumprimento das leis urbanas é seletivo, aplicado com rigor contra os pobres e flexibilizado para os poderosos.
A cidade permanece, em grande parte, refém de um modelo de urbanização conservador. A modernização brasileira — marcada por informalidade, concentração fundiária e desigualdade extrema — aprofunda a fragmentação territorial. Em vez de integração, temos muros, condomínios fechados, favelas e cidades partidas.
Alternativas possíveis: a reconstrução democrática do urbano
Para superar esse modelo, é urgente reconstruir a cidade a partir do interesse público. Isso exige:
- Financiamento massivo em infraestrutura social urbana, especialmente em mobilidade, saneamento, saúde e habitação;
- Reforma fundiária urbana, para combater a especulação e dar função social ao solo urbano;
- Participação popular efetiva nos processos de planejamento, orçamento e decisão territorial;
- Combate à informalidade e valorização do trabalho urbano, com políticas de emprego e proteção social.
A cidade justa exige uma inversão de prioridades: das avenidas para os becos, dos shoppings para os mercados populares, dos condomínios murados para os conjuntos habitacionais.
A cidade como campo de luta
Não existe neutralidade urbana. Toda cidade tem lado. Toda rua, calçada, transporte ou política pública expressa uma escolha: ou garante dignidade, ou aprofunda a exclusão. A justiça urbana não virá de cima. Ela será fruto de lutas, de organização popular e de uma reforma profunda no modo como planejamos, governamos e vivemos as cidades.
Mesmo em meio à financeirização e à desindustrialização, ainda há espaço para resistência. Cidades justas são possíveis — e necessárias — para um futuro mais humano, democrático e inclusivo. Basta lembrar: a cidade não é neutra. Ela escolhe quem pode viver com dignidade. Cabe a nós mudar essa escolha.