A noção de uma “cidade neutra” – um espaço urbano isento de conflitos de interesse, onde o planejamento se desenrola de forma imparcial e equitativa para todos os seus habitantes – é, na verdade, uma utopia inatingível. As cidades, complexos organismos sociais, são intrinsecamente arenas de disputa, reflexo das relações de poder, do capital e das ideologias que moldam seu desenvolvimento. Em um cenário global cada vez mais marcado pelo neoliberalismo e pela financeirização da vida urbana, onde o capital circula com velocidade impensável, as cidades transcenderam sua função primordial de simples territórios de convivência humana. Elas se converteram em palcos de intensa disputa por território, poder e, fundamentalmente, por direitos.
Nesse contexto, as leis municipais de uso e ocupação do solo, como a Lei Complementar Nº 525, de 14 de abril de 2011, de Uberlândia, frequentemente se tornam espelhos das tensões inerentes ao desenvolvimento urbano. A observação de que tais legislações tendem a privilegiar empreendedores imobiliários e uma elite econômica não é um fenômeno isolado, e Uberlândia, infelizmente, não foge a essa regra. Embora a lei ostente um arcabouço normativo que teoricamente busca a gestão eficiente e sustentável do território, a prática da implementação e a localização de seus instrumentos revelam desequilíbrios que perpetuam a segregação socioespacial.
O Zoneamento e a Lógica do Capital
A Lei Complementar Nº 525/2011, em sua estrutura e categorização de zonas urbanas, estabelece um mapa de possibilidades e restrições que, consciente ou inconscientemente, alinha-se à lógica da valorização do capital. Zonas Centrais (ZC1, ZC2) e Zonas Mistas (ZM), por exemplo, são áreas de alta atratividade para investimentos, com maior densidade e flexibilidade de usos. Essas áreas, por sua localização privilegiada e acesso à infraestrutura, tendem a se valorizar exponencialmente, beneficiando proprietários de terras e grandes incorporadoras.
Em contrapartida, as Zonas Residenciais (ZR1, ZR2, ZR3) são diferenciadas por densidade, o que pode direcionar diferentes camadas sociais para distintas áreas da cidade. Embora não explicitamente segregacionistas, essas diferenciações, aliadas à dinâmica do mercado imobiliário, contribuem para a formação de enclaves socioeconômicos, onde o acesso a determinados tipos de moradia é condicionado pelo poder aquisitivo.
A criação de Áreas de Diretrizes Especiais (ADEs) oferece flexibilidade para o planejamento, o que, em tese, poderia ser usado para fins sociais. No entanto, a prioridade dada a grandes avenidas e polos tecnológicos (como a ADE V – Pólo Tecnológico de Uberlândia), embora importantes para o desenvolvimento econômico, pode, se não houver contrapartidas sociais robustas e fiscalizadas, acentuar a disparidade na distribuição de recursos e oportunidades, concentrando os benefícios em setores específicos da sociedade. A requalificação urbana (ADE I), por exemplo, embora vital, pode, em seu processo, gerar gentrificação, expulsando moradores de baixa renda que não conseguem arcar com os novos custos de vida em áreas valorizadas.
A Habitação de Interesse Social na Periferia: Uma Questão de Acesso e Direitos
A crítica central levantada – de que as zonas de habitação de interesse social (ZEIS) estão sempre localizadas em áreas periféricas – ressoa profundamente na análise da Lei Complementar Nº 525/2011. A lei, de fato, cria as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e destina percentuais de área loteável em Zonas de Urbanização Específica (ZUEs) para Habitação de Interesse Social (HIS). No entanto, a localização dessas áreas, conforme detalhado na própria lei e suas alterações, confirma a tese de que a moradia para a população de baixa renda é relegada aos rincões da cidade.
Ao analisarmos as ZUEs com destinação para HIS (como ZUE 6 – Setor Mansour V, ZUE 7 – Setor Monte Sinai, ZUE 8 – Setor São Bento II, ZUE 9 – Setor Mansour IV, ZUE 10 – Setor Parque Santo Antônio III, ZUE 11 – Setor Pôr do Sol e ZUE 12 – Setor Olhos D`água), percebe-se que, apesar de estarem em “setores”, muitas dessas localidades historicamente são consideradas áreas de expansão urbana ou periferia de Uberlândia. A recém-criada ZUE 17 (Complexo Urbano-Ecológico Interparque I, Cidade Inteligente), embora inovadora em sua proposta de integração ambiental, ainda representa uma nova fronteira de expansão.
Essa localização periférica das ZEIS e das áreas de HIS gera uma série de consequências negativas para os moradores:
- Afastamento de Oportunidades: A distância dos centros econômicos, empregos, serviços de saúde de maior complexidade, universidades e equipamentos culturais aumenta o custo e o tempo de deslocamento. Isso impõe uma dupla carga sobre a população de baixa renda: a dificuldade de acesso e a perda de tempo produtivo.
- Infraestrutura Deficitária: Embora a lei preveja a implantação de infraestrutura, a realidade da periferia muitas vezes revela a carência de saneamento básico adequado, transporte público eficiente, escolas de qualidade e postos de saúde bem equipados. A “função social” da propriedade, nesse contexto, torna-se meramente formal se a moradia não estiver integrada a uma infraestrutura urbana completa.
- Segregação Socioespacial: A concentração da população de baixa renda em áreas distantes e com infraestrutura limitada acentua a segregação. Isso não apenas cria “guetos urbanos”, mas também limita a mobilidade social e o acesso a redes de oportunidades, consolidando desigualdades.
- Apropriação da Mais-Valia Urbana: O Estado, ao desapropriar ou destinar terras mais baratas nas periferias para habitação social, transfere os custos da infraestrutura para essas áreas, enquanto as regiões centrais, já dotadas de infraestrutura e altamente valorizadas, continuam a gerar lucros exorbitantes para os empreendedores imobiliários. A lei, ao definir os parâmetros de uso e ocupação, facilita essa dinâmica, sem mecanismos robustos que redistribuam a mais-valia gerada pelo desenvolvimento urbano para o financiamento de habitação social em áreas mais centrais ou bem localizadas.
A Questão da “Função Social da Terra”: Entre o Discurso e a Prática
A Lei Complementar Nº 525/2011, especialmente com as alterações da Lei Complementar nº 784/2025, faz menção explícita à “função social da terra”, buscando combater vazios urbanos e ampliar a oferta de unidades habitacionais. Permite-se que proprietários de imóveis em ZEIS e ZUEs ociosas requeiram a adequação dos índices urbanísticos para projetos de HIS. No entanto, a efetividade dessa medida depende de uma fiscalização rigorosa e de incentivos que realmente transformem o uso da terra ociosa em benefício social, e não apenas em oportunidade para novos ciclos de valorização e especulação.
Em um cenário onde o capital financeiro domina a produção do espaço, a função social da propriedade muitas vezes é esvaziada de seu conteúdo original. A terra, ao invés de ser um bem para usufruto social, torna-se um ativo financeiro, sujeita à especulação e à acumulação. As políticas de ajuste fiscal e privatizações, impulsionadas pelo modelo neoliberal, tendem a reduzir a capacidade do Estado de intervir efetivamente na regulação do mercado de terras e na provisão direta de moradia, deixando a cargo da iniciativa privada um setor que deveria ser prioritariamente de interesse público.
O Desafio da Justiça Urbana no Século XXI
A pergunta crucial persiste: ainda é possível construir cidades justas no século XXI? A Lei Complementar Nº 525/2011, apesar de suas intenções declaradas de ordenamento e desenvolvimento sustentável, reflete as tensões de uma cidade inserida na lógica global do capital. A concentração de habitação de interesse social nas periferias não é um mero detalhe técnico; é um sintoma profundo da injustiça urbana, da persistência da segregação e da priorização do lucro em detrimento do direito à cidade.
Para construir cidades mais justas, o planejamento urbano não pode ser um processo neutro. Ele precisa ser ativamente engajado na desconstrução das lógicas que privilegiam a acumulação e na promoção da equidade. Isso implicaria em:
- Revisitar a localização das ZEIS: Buscar, de forma proativa, a implantação de habitação de interesse social em áreas mais centrais e dotadas de infraestrutura, utilizando mecanismos como a desapropriação por interesse social, o direito de preempção e a aplicação de instrumentos como o IPTU progressivo no tempo para combater vazios urbanos em áreas valorizadas.
- Mecanismos de Recuperação da Mais-Valia Urbana: Implementar instrumentos que permitam ao poder público capturar uma parcela da valorização imobiliária gerada por investimentos públicos ou mudanças no zoneamento, reinvestindo esses recursos em infraestrutura e habitação social para a população de baixa renda em todas as regiões da cidade.
- Fortalecimento da Participação Social: Garantir que as decisões sobre o planejamento urbano sejam tomadas de forma mais democrática, com a participação efetiva de movimentos sociais, associações de moradores e outras entidades da sociedade civil, para que as necessidades e aspirações da população sejam de fato incorporadas nas políticas públicas.
- Políticas Habitacionais Holísticas: Ir além da mera construção de unidades habitacionais, integrando-as a políticas de geração de emprego e renda, educação, saúde e cultura. A moradia digna não se resume a quatro paredes, mas ao acesso pleno à vida urbana.
O sonho de justiça urbana, que ganhou força com as utopias socialistas no século XX, pode ter sido “atropelado” por políticas neoliberais, mas não foi aniquilado. A Lei Complementar Nº 525/2011, ao mesmo tempo em que revela as limitações impostas pela lógica do capital, também oferece brechas e instrumentos que, se utilizados com uma visão mais ousada e socialmente comprometida, poderiam pavimentar o caminho para uma Uberlândia mais justa e equitativa. A questão não é se é possível construir cidades justas, mas se há vontade política e mobilização social para desafiar as estruturas que historicamente perpetuam a desigualdade no espaço urbano.
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